Josy Acosta é mulher negra, mãe, candomblecista, atriz,
professora de teatro e pesquisadora de teatro negro.
No dia 20 de outubro de 2019,
pude assistir na sala do coro do TCA o “Sarauzinho da Calu”, espetáculo
infanto-juvenil inspirado no premiado livro “Calu, uma menina cheia de
histórias” (Editora Malê), de autoria de Cássia Vale e Luciana Palmeira, com
prefácio de Lázaro Ramos. Cássia Valle assina também a direção da montagem que
conta com a codireção de Leno Sacramento e direção musical de Cell Dantas. Um
espetáculo musical que une a expressividade dos atores/atrizes jovens/adultos
em diálogo com a atriz mirim Ayana Dantas.
Este texto chega com 3 anos de
atraso, pois estava ocupada com tantas coisas: gestação, casamento, pandemia, separação,
desemprego, posse em cargo público 40h, maternidade solo, iniciação no
candomblé. Mas, voltemos ao espetáculo. Quando assisti à apresentação, estava
com 8 meses de gestação, havia finalizado a defesa da minha dissertação de
mestrado e fiquei muito feliz não só com o protagonismo negro em cena, mas com
uma criança negra no palco, cheia de desenvoltura e diversas na plateia,
felizes e interagindo com os (as) artistas. Lembro que na época fiz anotações
sobre a peça, gravei áudio das canções durante o espetáculo, mas infelizmente
perdi meu bloquinho de anotações e os arquivos em áudio gravados no smartphone.
Desde então, fiquei em dívida com Cássia Valle e sua produção. Mas acredito que
tudo tem seu tempo e se escrevo agora é porque assim deveria ser.
Uma banda ao vivo executa a
trilha sonora do espetáculo, em uma época de bombardeio tecnológico quando mães
e pais levam sua crianças para assistir ao Sarauzinho da Calu o tempo se
transforma, pois no aconchego do teatro famílias se unem, as telas não estão
presentes não mãos dos pequenos, ali as crianças acompanham com atenção cada
movimento e os adultos, provavelmente, revisitam brincadeiras da sua infância,
enquanto as crianças podem ver possibilidades de brincar. E neste ponto a
direção é assertiva, pois o cenário além de bonito, lúdico, traz elementos
cênicos funcionais, através das ações dos artistas os objetos transformam-se
com fluidez diante dos nossos olhos, um elenco afinado que assim como crianças,
brincam.
Ao meu olhar de atriz,
candomblecista e pesquisadora de arte negra, chamou atenção o fato de o banco
da narradora ser médio e dos demais personagens serem pequenos. No terreiro chamamos os bancos pequenos de
apoti, é nele que sentam aqueles que são recém iniciados. Sentamos para
aprender, para ouvir, estamos em um nível diferentes porque adultos somos da
porta para fora, mas antes de atingir certa idade dentro da comunidade
religiosa de matrizes africanas, somos crianças. E Calu, como é dito o tempo
todo é a menina Griot, portanto é uma mais velha, uma sábia, uma contadora de
histórias. Cabe destacar que este recurso do banco, acredito eu que também
sirva para valorizar a presença da atriz mirim, pois desta forma ela é colocada
em primeiro plano.
O espetáculo mostra as
crianças a possibilidade de, assim como Calu, colocar a criatividade no
bloquinho de anotações, de ler as histórias e imagens presentes nos livros.
Aliás, você lê para sua criança? Quais histórias você lê? Você inventa
histórias para sua criança ouvir, quais são os nomes das personagens? Você
consegue parar o tempo e apreciar os desenhos que sua filha/filho faz?
O Sarauzinho da Calu rompe com
o habitual da cena infantil, na qual, geralmente, artistas negros são poucos
presentes, onde a personagem principal é loira ou tem longos cabelos lisos, não
há adultos dentro de grandes bonecos (fantasiados) de personagens que estão em
destaque na internet. Mas então a peça serve apenas para as crianças negras?
Não, pois é um convite a diversidade, visto que a criança não negra pode
perceber que o cabelo da coleguinha é tão bonito quanto o seu, serve para os
pais que acompanham suas crianças conhecerem personalidades negras que fizeram
e fazem histórias, e juntos com nossas crianças, vislumbrarmos uma sociedade
mais igual, com menos preconceito e respeito as diversidades. Afinal, a criança
de hoje será o adulto do amanhã.
Calu é alegria, musicalidade,
identidade e orgulho ancestral. E durante a Bienal do livro da Bahia 2022, isso
se comprovou pra mim, pois o primeiro stand que entro com minha filha Maisha (3
anos) ela foi correndo, pegou um livro e disse: “eu quero esse mamãe, ela se
parece comigo”. Quando olhei a capa, estava lá: Calu uma menina cheia de
histórias. Com certeza era essa menina griot, esse erê chamado Calu,
lembrando-me que eu ainda precisava falar sobre ela. E assim o fiz.
Maisha Bárbara arquivo pessoal.
FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO:
O elenco conta com Kelly Ribeiro, Clara Cardoso, Naira da Hora, Juliana Luz, Vagner de Jesus e a atriz mirim Ayana Dantas, além dos artistas colaboradores Merry Batista, Marquinhos Dede, Shirley Sanveja, Nine Vieira . A direção do Sarauzinho é de Cássia Valle, codireção Leno Sacramento, produção da DiPreta, direção musical de Cell Dantas, iluminação Rivaldo Rio e Fotografia de Fafá.
Salvador, 19 de janeiro de 2023.